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19/07/2020

DAS RINHAS DE GALO AO TOPO DO CARTEL DE JALISCO, QUEM É O MEXICANO PRESO NA PENITENCIÁRIA FEDERAL DE MOSSORÓ




José González Valencia, conhecido como 'El Chepa', aguarda decisão sobre sua extradição na penitenciária federal de Mossoró, junto com parte da cúpula do PCC.
O traficante de drogas José González Valencia pouco antes de ser preso no Brasil. Foto/Divulgação
Jafet Arias Becerra esperava a família na saída de um resort de luxo na região metropolitana de Fortaleza, em uma das concorridas praias do litoral cearense. Usava óculos escuro, camiseta branca, bermuda colorida de banho e chinelo quando policiais o cercaram. Este turista, que vinha ao Brasil pela terceira vez, não resistiu. Suas férias acabaram neste 22 de dezembro de 2017, assim como a farsa que ele havia construído até então. Sua identidade de estrangeiro residente na Bolívia trazia o nome Jafet, quando na verdade se tratava do mexicano José Gonzáles Valencia, vulgo El Chepa, número 2 do cartel Jalisco Nueva Generación de acordo com autoridades do país. A sorte parecia tê-lo abandonado.
Doze anos antes da Polícia Federal algemá-lo, El Chepa viveu um episódio cinematográfico. Passava da meia noite do dia 1º de agosto de 2005. Apesar da hora avançada de terça-feira, cerca de 250 pessoas se aglomeravam em torno do pequeno ringue para rinha de galo montado no centro da pista de hipismo conhecida como El Carril, na cidade de Tonalá, no Estado mexicano de Jalisco. Lá estas aves com esporas afiadas como navalhas e status de atleta são treinadas desde os primeiros anos de vida para matar ou morrer para deleite dos espectadores. Naquela noite, parte do público que torcia e fazia suas apostas era formada por integrantes do cartel Milenio, criado na década de 1970 por Armando Valencia Cornelio, conhecido como El Maradona, um ex-fazendeiro de abacates que passou a se dedicar ao tráfico de drogas. Quando o relógio marcava pouco menos de 15 minutos para uma hora da manhã o sangue das pessoas se misturou ao das aves e suas penas no ringue.
Um grupo de homens armados com fuzis de assalto AK-47 e Hk começou a disparar dentro de El Carril, e duas granadas de fragmentação foram lançadas contra a multidão. Os autores do ataque, que deixou quatro mortos e mais de 20 feridos, eram pistoleiros —ou sicarios, como são conhecidos no México— do cartel Los Zetas, então rivais do Milenio. Baleado no braço, José González Valencia conseguiu escapar. Este é um dos primeiros registros na imprensa local deste mexicano que depois viria a ser conhecido por muitos nomes. Ao ser preso no Brasil em dezembro de 2017, doze anos depois do atentado, ele usava uma identidade boliviana falsa em nome de Jafett Arias Becerra. Mas no México ele já havia se tornado famoso muito antes pelos apelidos de El Chepa, Camarón e Santy: desde 2009 José era o número dois do segundo maior cartel mexicano de drogas, o Jalisco Nueva Generación (JNG), também chamado de Los Matazetas, um recado claro a Los Zetas.
O grupo, cujo poder hoje fica atrás apenas do cartel de Sinaloa, se originou em 2009 de uma cisão do cartel Milenio, criado por El Maradona (o patriarca do clã Valencia) e desmantelado naquele ano. A família Valencia é tão importante para o cartel que os irmãos e irmãs de José (que somam 10 homens e 8 mulheres) fazem parte de um subgrupo do JNG chamado de Los Cuinis: o nome faz referência a um roedor comum no Estado de Jalisco que tem grandes ninhadas com mais de uma dezena de filhotes.
O JNG utiliza os métodos violentos que se tornaram o padrão na disputa entre grupos rivais de traficantes: decapitações, assassinatos em massa e sequestros. No mais recente massacre atribuído ao cartel ao menos 13 policiais foram emboscados e mortos enquanto dirigiam por uma estrada rural nos arredores da cidade de Aguililla, no Estado mexicano de Michoacán, em outubro de 2019. Mas uma das ações mais ousadas do cartel foi o sequestro de um dos filhos do então chefe dos chefes do tráfico de drogas, Joaquín El Chapo Guzmán, em agosto de 2016. Jesús Alfredo Guzmán Salazar foi levado por pistoleiros do enquanto jantava em um restaurante de luxo em Puerto Vallarta, cidade famosa por suas praias e resorts. Ele foi solto dias depois após negociações entre os dois cartéis, o JNG e o de Sinaloa.
José El Chepa não era um sicario —ou pistoleiro— do cartel: a promotoria acredita que ele chefiava o setor financeiro do grupo criminoso, comandando as operações e pagamentos diretamente da cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, onde morava desde 2015 após fugir das autoridades mexicanas depois da prisão de seu irmão Abigael. Também cabia a ele comandar o esquema de segurança de Nemesio Oseguera Cervantes, El Mencho, seu cunhado, número 1 do JNG e o traficante mais procurado do México desde a prisão de El Chapo. Apesar do trabalho burocrático, El Chepa também responde a processos por ser o suposto mandante de uma série de homicídios, inclusive de agentes de Estado, e por tráfico de drogas.
El Chepa desembarcou no Brasil no aeroporto internacional de Guarulhos, em São Paulo, em 22 de dezembro de 2017. De lá voou para Fortaleza no mesmo dia. Imagens feitas pelas câmeras do circuito interno do aeroporto mostram um homem de calça jeans e polo branca caminhando despreocupado pelo saguão. Ao que tudo indica, segundo a PF, era uma viagem de férias: o traficante queria passar as festas de fim de ano ao lado da mulher e filhos. Na capital cearense visitou um parque aquático e se hospedou em um resort na região metropolitana de Fortaleza. No dia 27, enquanto aguardava a família sair do hotel, se encostou em duas palmeiras. Foi preso neste instante pela PF, sem reagir. Ele negou à Justiça Federal brasileira qualquer envolvimento com tráfico de drogas. Posteriormente as autoridades informaram que essa não era a primeira passagem do mexicano pelo país: já estivera aqui em 2015 e 2016, sem ser incomodado graças à sua identidade falsa.
A identidade falsa boliviana do número dois do cartel de Jalisco, José González Valencia. Foto/Divulgação
Vizinho de Marcola
Atualmente El Chepa é o único integrante dos cartéis mexicanos preso no sistema penitenciário federal do Brasil, de acordo com levantamento do Departamento Penitenciário Nacional obtido pelo EL PAÍS via Lei de Acesso à Informação. As penitenciárias estaduais do país abrigam ainda um compatriota de José e rival no mundo do crime: Lúcio Rueda Bastos, ligado ao cartel de Juárez e preso em março de 2019.
El Chepa aguarda o resultado dos processos de extradição que tramitam contra ele em uma cela individual na penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Os Estados Unidos e o México querem o direito de julgar o traficante. À reportagem do EL PAÍS, sua defesa afirmou que ele tem direito a ser extraditado para o México, “uma vez a Lei de Imigração determina que quando mais de um Estado requer a extradição da mesma pessoa em caso de crimes diversos, terá preferência o Estado requerente em cujo território tenha sido cometido o crime mais grave segundo a lei brasileira”. No México José responde por homicídios, enquanto que a acusação dos EUA é por crimes de tráfico de drogas.
Em Mossoró El Chepa tem como vizinho e companheiros de banho de sol parte da cúpula da facção Primeiro Comando da Capital, dentre eles o líder máximo do grupo criminoso, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, transferido para lá em março de 2019.
Esta não é a primeira vez que Marcola fica detido junto com outro preso estrangeiro de renome. O líder do PCC já cumpriu pena na penitenciária de Presidente Bernardes ao lado do ex-guerrilheiro chileno da Frente Patriotica Manuel Rodríguez, Mauricio Hernández Norambuena, condenado a 30 anos de prisão pelo sequestro do publicitário Washington Olivetto em 2001. Promotores do Ministério Público de São Paulo creditam à convivência entre os dois e à influência de Norabuemba uma série de mudanças e melhorias estruturais no organograma da facção paulista, bem como a incorporação de algumas táticas de guerrilha urbana e roubo a bancos nas práticas do PCC.
O PCC e os cartéis mexicanos
Não se sabe se El Chepa tratou de negócios em suas visitas ao Brasil, tampouco quais seriam os objetivos de suas viagens anteriores ao país. A princípio, o grande cliente dos cartéis mexicanos são os Estados Unidos, maiores consumidores de cocaína e outras drogas sintéticas do mundo. Além do mais, o México não é grande produtor de drogas, adquiridas pelos cartéis junto à Colômbia, Bolívia e outros países sul-americano. Eles também dispõe de suas próprias rotas marítimas para a Europa e Ásia, logo não haveria necessidade de utilizar os portos brasileiros. No entanto, aos poucos vão surgindo evidências de laços entre facções brasileiras e os grupos mexicanos.
Um dos primeiros indícios desta relação ocorreu em 2014, quando a Polícia Federal identificou sinais de que o PCC havia enviado uma remessa-teste de cocaína para o México. Os mais de 20 tabletes da droga tinham como destino a cidade portuária de Vera Cruz, onde o JNG tem presença juntamente com outros grupos locais. Já em 2019 uma investigação da Polícia Civil encontrou indícios de que o cartel mexicano de Sinaloa seria um “grande fornecedor de drogas em larga escala para o PCC, abastecendo tanto o mercado interno quanto exportando drogas para a Europa”, conforme reportagem do portal UOL. Por enquanto as provas tornadas públicas são tênues: uma foto com o brasão do grupo mexicano foi encontrado no celular de um traficante brasileiro.
Também se especula que Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, um dos principais interlocutores do PCC junto aos traficantes bolivianos e preso em Maputo, Moçambique, em abril deste ano, tinha contatos com o cartel de Sinaloa. Mesmo não sendo um irmão da facção paulista, uma vez que não passou pelo processo de batismo do grupo, Fuminho é muito próximo de Marcola, com quem cumpriu pena e participou de roubos a banco. Assim como El Chepa, o brasileiro também foi preso com documentos falso bolivianos, e chegou a morar no país por alguns meses.
A Procuradoria-Geral da República já se posicionou sobre a extradição de El Chepa: “O Ministério Público Federal manifesta-se pelo deferimento do pedido de extradição de José González Valencia, oriundo das autoridades dos Estados Unidos da América”, informou o então vice-procurador da República José Bonifácio Borges de Andrada, em despacho datado em 11 de outubro de 2019. Agora o destino deste homem de muitos nomes está nas mãos do Supremo Tribunal Federal, que não tem data para decidir sobre o caso.

Do El Pais






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